segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O ESTATUTO DOS JUÍZES E A POLÉMICA ELEIÇÃO DE RAUL QUERIDO VARELA AO CARGO DE JUIZ CONSELHEIRO DO STJ

O Procurador-geral da República (PGR), Júlio Martins, requereu a fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade e da legalidade da Resolução nº 92/VII/2009, de 4 de Fevereiro. Através desta resolução a Assembleia Nacional (AN) elegeu ao cargo de Juiz Conselheiro, os Drs. Helena Maria Alves Barreto e Raul Querido Varela para integrarem o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), exercendo assim um poder que lhe é conferido pelo artigo 290.º n.º 3 b) da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV).

Na designação destes dois juízes, a AN deve respeitar o artigo 290.º da CRCV que prevê o seguinte:
«Só podem ser designados juízes do Supremo Tribunal de Justiça nos termos do presente artigo, os cidadãos nacionais de reputado mérito, licenciados em Direito e no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos que, à data da designação, tenham exercido, pelos menos durante cinco anos, actividade profissional na magistratura ou em qualquer outra actividade forense ou de docência de Direito e que preencham os demais requisitos estabelecidos na lei.»

Quer isto dizer que os candidatos à eleição ao cargo de Juiz Conselheiro do STJ devem preencher os requisitos fixados na CRCV, bem como os estabelecidos na lei geral. O problema reside em saber qual é esta Lei geral que a CRCV refere. Será que se trata da Lei que estatui os Estatutos do Ministério Público (EMP), aprovado pela Lei n.º 135/IV/95, de 3 de Julho? Ou será que se refere à Lei nº 102/IV/93, de 31 de Dezembro, que estabelece requisitos para o exercício de funções públicas? Ou à ambos?

O PRG defende que esta eleição deve respeitar a Lei nº 102/IV/93, de 31 de Dezembro, que estabelece os requisitos para o exercício de funções públicas.

Ora, de entre os requisitos estabelecidos na lei para o exercício de funções públicas, figura o limite máximo de idade, previsto no artigo 31.º da referida Lei.

Com efeito, este artigo prevê que: «Não podem continuar a exercer funções públicas os funcionários ou agentes que completarem 65 anos de idade.»

Considera ainda o PRG que, o exercício de funções de Juiz Conselheiro, que consiste basicamente em administrar a justiça em nome do Povo, configura exercício de funções públicas. Por outro lado, uma vez que o EMJ é omisso, quanto ao limite de idade, deve-se aplicar a lei geral.

O Dr. Raul Querido Varela, como todos sabemos, tem mais de 65 anos de idade. Nasceu a 25 de Dezembro de 1925. Tem 83 anos. Assim, a AN, ao eleger o Dr. Raul Querido Varela para o cargo de Juiz Conselheiro do STJ viola os artigos 2º, nº 1, e 3º da CRCV, e o artigo 31º da Lei nº 102/IV/93, de 31 de Dezembro, no entender do PGR.

É de louvar esta iniciativa de Júlio Martins. A primeira questão que se coloca é a de saber se um Juiz do Supremo Tribunal de Justiça, é ou não, funcionário público. A segunda é, se mesmo não sendo funcionário público, se é lhe aplicável o regime da função pública.

Não concordo que se deva considerar absurdo o pedido do PGR. Faz todo o sentido. Os Juízes Conselheiros do STJ, certamente, terão bons argumentos a favor ou contra. É bom que todos tenhamos consciência de que se trata de uma questão jurídica e não política. Por outro lado, o PRG é um jurista de reconhecido mérito, e os seus argumentos são válidos. Podemos concordar ou discordar. Ao discordar temos de analisar a questão com seriedade e apresentar argumentos contra.

De acordo com o artigo 1.º n.º 1 dos EMP, “os Juízes formam um corpo único autónomo e independente de todos os órgãos de soberania, e regem-se por Estatuto”.

O artigo 11.º f) dos EMP sob a epígrafe “Requisitos para o Ingresso na Magistratura Judicial” diz-nos que o cidadão deve satisfazer os demais requisitos estabelecidos na Lei para a nomeação de funcionários do Estado. Neste sentido, os EMP parece equiparar o juiz ao funcionário público, mandando aplicar o limite de idade de 65 anos. Contudo, a questão merece uma análise mais profunda.

Nos termos da CRCV, os juízes têm um estatuto próprio, sendo titulares de um órgão de soberania. Com efeito, de acordo com artigo o artigo 220.º da CRCV:
1.A magistratura judicial forma um corpo único, autónomo e independente de todos os demais poderes e rege-se por estatuto próprio.
3. Os juízes, no exercício das suas funções, são independentes e só devem obediência à lei e à sua consciência.

Os argumentos de independência e não subordinação podem levar-nos a concluir que os juízes não são funcionários públicos e, como tal, o limite de 65 anos de idade não lhes aplicável. Os juízes integram um órgão de soberania. Como sabemos, a CRCV prevê, como órgãos de soberania, a AN, o Presidente da República (PR), o Governo e os Tribunais. Estes últimos têm o dever de administrar a justiça em nome do Povo. A eleição dos juízes está regulada em parte pela CRCV e completada pelo EMJ. Com isso, pode-se inferir que o estatuto próprio dos juízes é incompatível com a dos funcionários públicos. Por esse motivo, a doutrina defende que os juízes não são funcionários públicos e nem têm direito à greve.

Por outro lado, hoje, a maioria da doutrina defende que os juízes ocupam um cargo público e não exercem uma função pública. A própria CRCV faz esta distinção entre função pública e cargo público nos artigos 42.º e 55.º. Para um melhor esclarecimento, citemos, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 675): “o direito à função pública significa a possibilidade de obter emprego através de ingresso e carreira nos quadros dos serviços ou organismos da administração central, regional, local, dos institutos públicos, dos serviços personalizados ou fundos públicos, qualquer que seja o seu estatuto (funcionário, agente, contratado), o direito de acesso aos cargos públicos consiste na possibilidade de acesso aos cargos de representação ou direcção, em órgãos do Estado (designadamente, os órgãos de soberania) …”

Ora, fácil é de se concluir que na opinião destes conceituados juristas, os juízes exercem um cargo público e não integram a função pública. Esta é também a posição da CRCV, já que trata as duas funções em artigos distintos. Ora, uma vez que o artigo 31.º da Lei nº 102/IV/93, de 31 de Dezembro é aplicável a função pública, fica claro que não podemos aplicar directamente este artigo aos juízes do STJ, que ocupam um cargo público. Contudo, o EMJ nada refere sobre este assunto? Será que podemos então aplicar subsidiariamente este artigo aos juízes?

Com o devido respeito pela opinião contrária, parece-me que o artigo 31.º da referida lei não é aplicável aos juízes. O direito de acesso a cargos públicos, sendo um dos direitos, liberdades e garantias, só pode sofrer restrições nos casos previstos na CRCV (artigo 17.º n.º 4). Outrossim, A extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais relativas aos direitos, liberdades e garantias não podem ser restringidos pela via da interpretação (artigo 17.º n.º 2).

Ora, não tendo esta limitação da idade sido feita nos EMJ, não devemos procurar noutros diplomas uma limitação deste direito. Portanto, o artigo 31.º não é aplicável aos Juízes Conselheiros do STJ, pelo que, independentemente das razões políticas, a nomeação do Dr. Raul Varela não viola, na minha opinião, nem a Lei, nem a CRCV.

Saliento contudo que, o PRG tem o mérito de, uma vez mais, trazer estas questões à discussão pública. Numa altura em que se dá o primeiro passo para resolver o problema da Justiça, porque não fazer deste ano, o ano da Justiça? Porque não dar um novo estatuto aos magistrados, consagrando claramente que, aos mesmos, não é aplicável o regime da função pública? Porque não actualizar o seu salário, independentemente do salário do PR? Da mesma forma que consideramos que os juízes não devem ser funcionários públicos e os projectos de revisão constitucional recomendam o acesso ao STJ através de concurso e nomeação do Presidente do STJ pelos seus pares, devemos aproveitar a onda, e dar aos magistrados o Estatuto que lhes é devido e que a CRCV recomenda. Mais vale tarde do que nunca!

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